Vagabundeava os seus finais de tarde ali pelo jardim, limpando a garganta, ensaiando-se muito, subindo e descendo escalas apoiando-se em vogais.
Franzia o sobrolho e dava-se ares circunspectos que resultavam no encontro redondo das mãos sobre o fundo das costas. Cofiava muito por vício o sobrolho que franzia, o que lhe dava já um rosto assimétrico no qual se mantinha apenas intacta a sobrancelha esquerda.
Quando se achava finalmente na seriedade que considerava necessária para contemplar poentes, o homem estacava então rente às varandas do jardim esperando com o olhar fixo em tal lugar a tal que se fazia esperar.
Ela tinha todos os predicados que são exigíveis a uma musa de topo, e ele achava-se assim muito grato por tal distribuição – perfeitamente aleatória – que de facto resultava muito feliz. Produzia imenso e calejava realmente os dedos como um homem que escreve deveras.
Tinha, claro, as vestes vaporosas, tal colo níveo, e muitas, muitas ondas que lhe cresciam do couro cabeludo para lado nenhum, já para não falar do ar impassível e distante que todos sabemos que as musas devem ter.
Assim, ele, um homem de sorte, enchia seguríssimo o peito mal a avistava entre as ramagens e iniciava os tantos elegíacos cantos baritonais que lhe competiam, dado receber dos deuses uma musa tão canonicamente conveniente.
Eram ais e uis, vários padecimentos e melancolias, sempre ao entardecer, em que se cantava acometido de uma paixão intensíssima e prometia excessos e devaneios de ordem superlativa – profissionalíssimo que estava já naqueles encontros.
Mas, naquele dia, a musa parecia trazer um ar estranhamente humano, reparou quando ela fitou o chão enchendo-se de humildade e ruborizando até.
Ficou impacientado com aquela mudança de cor repentina, que dizia muito mal com tal verso onde a voltas tantas da cantiga a sua face alva e redonda destronava luas e todo um inventário de coisas brancas.
Esforçou-se porém por prosseguir tal como sem o inesperado encardir da musa até paralisar em sílaba meã de palavra esdrúxula que devia assentar-lhe nos pés, estes que deviam ser de todas as coisas rasteiras as mais aéreas afinal, e sublimes, e tão leves, em movimento ascendente, estratosfé…
E a musa enterrada já até aos artelhos, afundava humanamente sob o peso de cada novo elogio. E, quanto mais afundava, maior também o rubor, sentindo-se naquela tarde obrigada a vermelhar cada burilado apodo.
E, nisto, o lírico esforçado persistia em tornar a atirá-la aos altos etéreos. Mas ela aterrava pesadamente, levantando poeira e voltando a afundar-se até aos joelhos.
Ele, tosseguento, já titubeava, inseguro de que a sua elegia em altitude alcançasse tão náufraga musa.
A musa, já com o chão pela cintura, decidiu-se finalmente a interrompê-lo, e disse em tom muito educado: “Estou-lhe profundamente grata por tudo, mas receio não poder aceitar”.
Incrédulo, o homem pôs-se de ponto muito interrogativo, deixando suspenso no ar, além deste, o braço glorificante que se agitava veemente em várias tentativas de elevação poética, destinadas a içar a musa da sua humilde profundidade.
Foi então que ela fez brotar da terra um fiozinho de voz modesto para explicar: “Ficar-lhe-ia eternamente obrigada, mas por isso mesmo vou ter que recusar. É que, sabe, não vim prevenida com nada que depois lhe possa dar”.