Houve um tempo em que ainda recebia os meus amores à janela. Vinham as mais das vezes sem avisar e acordava com o barulho das pedrinhas no vidro. Eu imaginava muito o dia em que escalariam, intrépidos, o algeroz junto à portada de ripas para se sentarem comigo no parapeito e em que assistiríamos juntos ao espectáculo aéreo das corujas, por fim.
Lembro-me em particular de um aniversário em que o termómetro marcava 39 graus centígrados. Tinha vindo de apagar os meus 18 anos para o quarto, embrulhada num xaile laranja e arrepiava-me com febre e Lautréamont, emprestado da biblioteca municipal.
Era Outubro nocturno, mas não um Outubro tão ameno que pudesse assomar à janela sem perigo com o nariz ferido de tanto o assoar. Ainda assim não hesitei quando soou a surpresa no vidro – e, tanto quanto sabia, estava longe o meu amor, no Porto. Abri a janela e recolhi feliz o pé de sardinheira encarnada lançado com pouco balanço na travessa estreita.
E era exactamente assim, e trazia mesmo a raiz, e eu sem censuras contra a prenda roubada fungava feliz da ponta do meu nariz para aquele meu amor que eu julgava distante e que tinha uma boca larga de palhaço, que lhe ficava de ser um clown de calçada em part-time.
Ainda hoje, se me imagino no Porto, julgo que pode a qualquer momento interromper-me os passos numa rua de comércio, sorrir-me mudo e mimar-me enquanto caminho, atinando coreografias com a minha sombra distraída para recreio dos transeuntes.
Recordo que lhe escrevia chamando-lhe o meu amor naïf e prometia-lhe gatos e paisagens de pequenas casinhas quadradas, ternuras rolhadas, abraços e mesmo o retomar dos passeios saltitantes de mãos dadas, equilibrando as promessas com a censura e as exigências de que me devolvesse os emprestados livros de poemas que me chegavam quase sempre semi-destruídos.
Sempre era assim, a imaginar-me mãe feita de água, transbordante, jorrando palavras e oferecendo os braços desinteressados aos amores que vinham à minha janela. Hoje, que vivo num 22º andar, sinto-os em perigo se me tocam à campainha, como em nenhum algeroz, e evito a intempérie se a gripe ameaça. Sei que o voo das corujas é uma coisa cá comigo, raro empresto livros.
Lembro-me em particular de um aniversário em que o termómetro marcava 39 graus centígrados. Tinha vindo de apagar os meus 18 anos para o quarto, embrulhada num xaile laranja e arrepiava-me com febre e Lautréamont, emprestado da biblioteca municipal.
Era Outubro nocturno, mas não um Outubro tão ameno que pudesse assomar à janela sem perigo com o nariz ferido de tanto o assoar. Ainda assim não hesitei quando soou a surpresa no vidro – e, tanto quanto sabia, estava longe o meu amor, no Porto. Abri a janela e recolhi feliz o pé de sardinheira encarnada lançado com pouco balanço na travessa estreita.
E era exactamente assim, e trazia mesmo a raiz, e eu sem censuras contra a prenda roubada fungava feliz da ponta do meu nariz para aquele meu amor que eu julgava distante e que tinha uma boca larga de palhaço, que lhe ficava de ser um clown de calçada em part-time.
Ainda hoje, se me imagino no Porto, julgo que pode a qualquer momento interromper-me os passos numa rua de comércio, sorrir-me mudo e mimar-me enquanto caminho, atinando coreografias com a minha sombra distraída para recreio dos transeuntes.
Recordo que lhe escrevia chamando-lhe o meu amor naïf e prometia-lhe gatos e paisagens de pequenas casinhas quadradas, ternuras rolhadas, abraços e mesmo o retomar dos passeios saltitantes de mãos dadas, equilibrando as promessas com a censura e as exigências de que me devolvesse os emprestados livros de poemas que me chegavam quase sempre semi-destruídos.
Sempre era assim, a imaginar-me mãe feita de água, transbordante, jorrando palavras e oferecendo os braços desinteressados aos amores que vinham à minha janela. Hoje, que vivo num 22º andar, sinto-os em perigo se me tocam à campainha, como em nenhum algeroz, e evito a intempérie se a gripe ameaça. Sei que o voo das corujas é uma coisa cá comigo, raro empresto livros.
<< Home