Antes de deixar Brooklyn para trás, V. plantou uma árvore. Não me recordo se mencionou que espécie de árvore tinha deixado para trás juntamente com tudo o que tinha. Garantiu-me que tinha saído apenas com a roupa no corpo e a determinação de chegar a Los Angeles.
Na altura, era já um chefe de cozinha, respeitado, num restaurante onde chegava a jantar por vezes Nastassja Kinski, belissima. Tinha vencido, já por mais de uma década, em Nova Iorque: either it loves you, or it eats you, M., gesticulava ao sair da cozinha para sentar-se junto da garrafa de grappa onde me encontrava com R. F. e também R., os retardatários do seu restaurante numa noite de quinta-feira.
Estávamos sob o cachecol do Inter, a fotografia de João Paulo II e o quadro de ardósia que revelava a quem entrasse no estabelecimento que Le Vie del Signori Sono Infiniti. Mas nem todas levavam ao restaurante de V., que esbracejava e ameaçava, expulsando qualquer comensal que lhe parecesse mais interessado no preço que no prato. It´s good food M., and you don´t pay for good food. It has no price. Capice, M?
Eu, considerando-me uma sortuda por me servir na sua mesa, assentia com a cabeça, sem questionar os acessos de fúria daquele braço tatuado de onde saíam raviolli e penne realmente bons, mesmo.
Mas, havia outras coisas que percebia. Tinha-se apaixonado por uma bailarina em Nova Iorque e tinham sido longamente felizes, V. e a sua bailarina. Devia ser bela, e V. amava-a outrora, sentia-se perfeitamente à medida que a voz de V. se deixava afogar ainda hoje num suspiro – o que, num napolitano duro de mais de 40 anos que cultiva hip hop de patrocínio mafioso no seu gira-discos, soa quase como que a um resfolegar de cavalo cansado.
De qualquer forma, houve o dia em que a bailarina deixou o apartamento de Brooklyn e V. não considerou sequer fazer as malas. Deixou o recheio aos vizinhos e lá partiu magoado rumo a Los Angeles logo após ter plantado a sua árvore.
Foi enquanto me contava isto que aconteceu a grande deriva. Sucede sobretudo quando se procura falar em duas ou três línguas na mesma conversa, e até mesmo quando se traduzem famosas citações que conhecemos melhor na nossa língua mãe.
Tenho muito ar de quem ouve, garante quem me conhece, e de facto é raro defraudar as expectativas. Portanto, não é pouco comum que as pessoas julguem por bem empregue o tempo gasto na tentativa de dar-me conselhos. Assim V. achou por bem citar-me Napoleão, enquanto reiterava o meu nome ininterruptamente a cada início e fim de frase – o que me soava assim muito musical com a pronúncia de Nápoles e a V. assegurava que eu estava de facto suspensa de cada uma das suas palavras.
M., nell'amore la fuga è la vittoria, hum, capice M ? When you love, you gotta run, M., encarava-me muito sério no fim enquanto eu me limitava a sorrir-lhe e aos restantes com o copo de grappa indeciso entre o tampo da mesa e os lábios, que procuravam ocupar-se desta maneira, justificando o silêncio.
Tinha sido perfeitamente elevada pelas palavras de V. e pela grappa àquele universo tão trágico de pena por todos os amores que perdemos pelo caminho e outros que não chegámos a ganhar, àquele estado de suspensão híbrida entre o mágico e o alcoólico no qual todos os amores são os da nossa vida, e belos e miseráveis, que não queria aterrar com palavras, e continuei muda e presa ao discurso do meu interlocutor, sempre no início e fim de cada frase, imaginando intermitentemente a sua bailarina dançando entre nós.
Aconteceu depois que nem na sobriedade me lembrei de questionar a citação que tão de coração era sabida por V., andando até há pouco tempo convicta que de facto Napoleão havia dito que no amor a fuga é a vitória. Tinha interiorizado muito bem a sua lógica e continua a parecer-me uma fuga muito heróica, a de V., e sobretudo com a tal pronúncia napolitana com que de vez em quando recordo a frase mentalmente.
Agora que descobri a correcta citação, custa-me muito imaginar V. a dizer-me que é contra o amor que a fuga é a vitória, pesaroso pela sua bailarina perdida. Decidi mesmo que jamais irei corrigi-lo.
Na altura, era já um chefe de cozinha, respeitado, num restaurante onde chegava a jantar por vezes Nastassja Kinski, belissima. Tinha vencido, já por mais de uma década, em Nova Iorque: either it loves you, or it eats you, M., gesticulava ao sair da cozinha para sentar-se junto da garrafa de grappa onde me encontrava com R. F. e também R., os retardatários do seu restaurante numa noite de quinta-feira.
Estávamos sob o cachecol do Inter, a fotografia de João Paulo II e o quadro de ardósia que revelava a quem entrasse no estabelecimento que Le Vie del Signori Sono Infiniti. Mas nem todas levavam ao restaurante de V., que esbracejava e ameaçava, expulsando qualquer comensal que lhe parecesse mais interessado no preço que no prato. It´s good food M., and you don´t pay for good food. It has no price. Capice, M?
Eu, considerando-me uma sortuda por me servir na sua mesa, assentia com a cabeça, sem questionar os acessos de fúria daquele braço tatuado de onde saíam raviolli e penne realmente bons, mesmo.
Mas, havia outras coisas que percebia. Tinha-se apaixonado por uma bailarina em Nova Iorque e tinham sido longamente felizes, V. e a sua bailarina. Devia ser bela, e V. amava-a outrora, sentia-se perfeitamente à medida que a voz de V. se deixava afogar ainda hoje num suspiro – o que, num napolitano duro de mais de 40 anos que cultiva hip hop de patrocínio mafioso no seu gira-discos, soa quase como que a um resfolegar de cavalo cansado.
De qualquer forma, houve o dia em que a bailarina deixou o apartamento de Brooklyn e V. não considerou sequer fazer as malas. Deixou o recheio aos vizinhos e lá partiu magoado rumo a Los Angeles logo após ter plantado a sua árvore.
Foi enquanto me contava isto que aconteceu a grande deriva. Sucede sobretudo quando se procura falar em duas ou três línguas na mesma conversa, e até mesmo quando se traduzem famosas citações que conhecemos melhor na nossa língua mãe.
Tenho muito ar de quem ouve, garante quem me conhece, e de facto é raro defraudar as expectativas. Portanto, não é pouco comum que as pessoas julguem por bem empregue o tempo gasto na tentativa de dar-me conselhos. Assim V. achou por bem citar-me Napoleão, enquanto reiterava o meu nome ininterruptamente a cada início e fim de frase – o que me soava assim muito musical com a pronúncia de Nápoles e a V. assegurava que eu estava de facto suspensa de cada uma das suas palavras.
M., nell'amore la fuga è la vittoria, hum, capice M ? When you love, you gotta run, M., encarava-me muito sério no fim enquanto eu me limitava a sorrir-lhe e aos restantes com o copo de grappa indeciso entre o tampo da mesa e os lábios, que procuravam ocupar-se desta maneira, justificando o silêncio.
Tinha sido perfeitamente elevada pelas palavras de V. e pela grappa àquele universo tão trágico de pena por todos os amores que perdemos pelo caminho e outros que não chegámos a ganhar, àquele estado de suspensão híbrida entre o mágico e o alcoólico no qual todos os amores são os da nossa vida, e belos e miseráveis, que não queria aterrar com palavras, e continuei muda e presa ao discurso do meu interlocutor, sempre no início e fim de cada frase, imaginando intermitentemente a sua bailarina dançando entre nós.
Aconteceu depois que nem na sobriedade me lembrei de questionar a citação que tão de coração era sabida por V., andando até há pouco tempo convicta que de facto Napoleão havia dito que no amor a fuga é a vitória. Tinha interiorizado muito bem a sua lógica e continua a parecer-me uma fuga muito heróica, a de V., e sobretudo com a tal pronúncia napolitana com que de vez em quando recordo a frase mentalmente.
Agora que descobri a correcta citação, custa-me muito imaginar V. a dizer-me que é contra o amor que a fuga é a vitória, pesaroso pela sua bailarina perdida. Decidi mesmo que jamais irei corrigi-lo.
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